terça-feira, 15 de setembro de 2015

Sobre a Liberdade

“Ética Para Meu Filho” de Fernando Savater

Cap. 3 – Faça O Que Quiser (pgs.61 e 62)
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   Mas, se já dissemos que nem ordens, nem costumes, e nem caprichos são suficientes para nos guiar quanto à ética, e agora se conclui que não há regulamento claro que nos ensine a ser um homem bom e a funcionar sempre como tal, como iremos nos arranjar? Minha resposta certamente o surpreenderá, e talvez, até o escandalize. Um divertido escritor francês do século XVI, François Rabelais, contou em um dos primeiros romances europeus as aventuras do gigante Gargantua e de seu filho Pantagruel. Eu poderia lhe dizer muitas coisas sobre esse livro, mas prefiro que mais cedo ou mais tarde você resolva lê-lo. Só direi que num certo momento Gargantua decide fundar uma ordem mais ou menos religiosa e instalá-la numa abadia, a abadia de Thélème, sobre cuja porta está escrito este único preceito: “Faça o que quiser.” E todos os habitantes dessa casa santa não fazem absolutamente nada mais do que isso, o que querem. O que você acharia se agora eu lhe dissesse que na porta da ética bem entendida está escrita justamente essa frase: faça o que quiser? É capaz de você se indignar comigo: ora, pois sim que é moral a conclusão que chegamos!, imagine o que aconteceria se todo mundo fizesse simplesmente tudo o que quisesse!, foi para isso que perdemos tanto tempo e gastamos tanto cérebro? Espere, espere, não se aborreça. Dê-me mais uma oportunidade: faça o favor de passar ao próximo capítulo...

Cap. 4: Dê A Si Mesmo Uma Boa Vida (pgs.65 e 66.)

   O que estou pretendendo lhe dizer ao colocar um “faça o que quiser” como lema fundamental da ética em cuja direção caminhamos tateando? Pois simplesmente (embora eu tema que depois acabe não sendo tão simples) que é preciso dispensar ordens e costumes, prêmios e castigos, em suma, tudo o que queira dirigi-lo de fora, e que você deve estabelecer todo esse assunto a partir de si mesmo, do foro íntimo de sua vontade. Não pergunte a ninguém o que você deve fazer de sua vida: pergunte-o a si mesmo. Se você deseja saber em que pode empregar melhor a sua liberdade, não perca colocando-se já de início a serviço de outro ou de outros, por mais que sejam bons, sábios e respeitáveis: sobre o uso da sua liberdade, interrogue... a própria liberdade.

    Claro, como você é um garoto esperto, pode ser que já estejam percebendo que aqui há uma certa contradição. Ao lhe dizer “faça o que quiser” parece que, de todo modo, estou lhe dando uma ordem, “faça isso e não aquilo”, embora a ordem seja agir livremente. Que ordem mais complicada, quando a examinamos de perto! Ao cumpri-la, você está desobedecendo a ela (pois não estará fazendo o que quer, mas o que eu quero e estou mandando); ao desobedecer a ela, você a estará cumprindo (pois está fazendo o que quer e não o que estou mandando... mas é exatamente isso que estou mandando!). Acredite, não estou querendo colocá-lo diante de uma charada como as que aparecem na seção de passatempos dos jornais. Embora esteja tentando lhe dizer tudo isto sorrindo, para não nos aborrecermos mais do que o necessário, o assunto é sério: não se trata de passar o tempo, mas de vivê-lo bem. A aparente contradição que encerra esse “faça o que quiser” é apenas um reflexo do problema essencial da própria liberdade, ou seja, não somos livres para não sermos livres, pois é inevitável que sejamos livres. E se você me disser que chega, que você está farto e não quer continuar sendo livre? E se você resolver entregar-se como escravo a quem fizer a melhor oferta ou jurar que obedecerá para todo o sempre a este ou àquele tirano? Pois você o fará porque quer, estará fazendo uso da sua liberdade e, mesmo obedecendo a outro ou deixando-se levar pela massa, continuará agindo conforme sua preferência: não estará renunciando escolher, mas estará escolhendo não escolher por si mesmo. Por isso um filósofo francês do nosso século, Jean-Paul Sartre, disse que “estamos condenados à liberdade”. Para essa condenação não há indulto possível...

   Assim, meu “faça o que quiser” é apenas uma forma de dizer que você deve levar a sério o problema da sua liberdade, o fato de que ninguém pode dispensá-lo da responsabilidade criadora de escolher seu caminho. Não se pergunte morbidamente se “vale a pena” todo esse alarde em torno da liberdade, pois queira ou não você é livre, queira ou não você tem que querer. Mesmo ao dizer que não quer saber de nada, querendo que o deixem em paz, você também estará querendo... querendo não saber de nada, querendo que o deixem em paz, embora sob a pena de se embotar um pouco. São as coisas do querer, amigo meu, como diz a canção! Mas não devemos confundir o “faça o que quiser” com os caprichos de que falamos antes. Uma coisa é você fazer o que quiser, e outra bem diferente é fazer a “primeira coisa que der vontade”. Não estou lhe dizendo que em certas ocasiões não possa ser suficiente a pura e simples vontade de alguma coisa: que você escolha comer num restaurante, por exemplo. Já que felizmente você tem um bom estômago e não se preocupa em engordar, vamos lá, peça o que quiser, peça o que tiver vontade... Mas, cuidado, pois às vezes a vontade nos faz perder em vez de ganhar.
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Savater, Fernando. Ética Para Meu Filho. Tradução: Mônica Stahel, Ed. Martins Fontes, São  

     Paulo, 2004. 3ª edição.